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24 de jul. de 2012

Brasil poliglota




CULTURA
Alex Teles

VOZES PERDIDAS

Brasil poliglota

No país unificado pelo português, linguistas calculam que 180 outras línguas sejam ainda usadas. Mas algumas, como o borun, têm hoje apenas cinco falantes





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"Thé athiano rióno." A frase faz parte do diálogo de três senhoras que se encontram na reserva dos crenaques em Resplendor, em Minas Gerais, para contar os sonhos da noite anterior. Refere-se a um beija-flor e é dita em borun, língua derivada do macro-jê, um dos dois grandes troncos linguísticos do Brasil pré-colonial (o outro é o tupi). Para o diminuto grupo de cinco falantes de borun, os sonhos são um meio de preservar o idioma. "Ao contá-los, um revive a memória do outro. Trazem à tona mitos, lendas e cantos esquecidos", diz Ailton Krenak, um dos líderes dos crenaques - antes conhecidos como botocudos.

Os linguistas avaliam que, até a chegada dos portugueses, eram falados aqui 1 200 idiomas. Em 500 anos, houve uma redução para 180. Ainda assim, o Brasil é o terceiro país do mundo em diversidade linguística.

O borun é um caso típico para entender o desaparecimento de uma língua no Brasil - hoje, além dele, mais de 20 idiomas correm risco de desaparecer, diz um mapeamento do linguista Denni Albert Moore, do Museu Paraense Emilio Goeldi. Começa com o genocídio indígena que remonta à chegada de dom João VI ao Brasil, em 1808. Entre várias medidas para tirar a colônia do atraso, dom João decidiu que as florestas do rio Doce deveriam dar lugar à agricultura. "Limpar" as matas envolvia eliminar os nativos. Ao enfrentar soldados armados, os botocudos foram reduzidos de 15 mil para menos de 200.

Uma segunda forma de dominação foi impedir que o idioma nativo fosse falado. No Brasil colonial, os jesuítas chegaram a criar o nheengatu - uma língua derivada do tupi nativo que tinha até dicionário, impresso por José de Anchieta, em 1595. Forçar os índios a falar o nheengatu era prática de seringalistas e escravocratas na Amazônia. O resultado foi avassalador: mesmo em regiões remotas do rio Negro, povos como os barés e os uarequenas perderam por completo seu idioma nativo, um derivado da família aruaque.

No século 20, conforme a política do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), povos como os crenaques foram agrupados próximos a quartéis e proibidos de preservar sua cultura. À medida que os mais velhos morriam, a maioria dos índios se esqueceu do borun. A língua chegou a ser considerada extinta até que, há 20 anos, um processo de retomada cultural reencontrou alguns falantes entre os idosos. "Os mais velhos estavam tão acostumados com a repressão à língua que levou anos para conseguirem manter um diálogo tranquilo", diz Ailton. Hoje, por meio de cantos e lendas, eles tentam garantir a sobrevivência do idioma entre os mais jovens.

A falta de um projeto unificado em prol da documentação é outro obstáculo à preservação dos idiomas indígenas. "Infelizmente, ainda não há no Brasil nenhum esforço coordenado e financiado. O que se tem são pesquisadores avulsos com estudos de pós-graduação sobre determinada língua nativa", lamenta Aryon Rodrigues, do Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade de Brasília (UnB). "Nem 5% das universidades brasileiras abrem espaço para a pesquisa dos idiomas indígenas. Só cultivam o português e as línguas estrangeiras de maior importância econômica."

A luz no fim do túnel pode ser um projeto, encabeçado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan), que começou em 2010 e visa mapear a realidade linguística do Brasil, respondendo a questões como número preciso de falantes, grau de fluência, forma de transmissão. Mas ele enfrenta vários desafios. O primeiro é criar metodologia capaz de documentar com profundidade técnica, rapidez e baixo custo os idiomas que restam. O segundo é classificar o que de fato está ameaçado. "Existem povos com densidade demográfica sadia e muitos falantes, como os suruís. E outros nos quais a população é pequena, e o número de falantes, reduzido. Entre os xipaias, no Pará, restam apenas três falantes vivos. Cada caso tem uma complexidade em si", explica Denni Albert Moore. O terceiro problema é que mesmo os grupos de baixo risco podem estar ameaçados. "Os cuicuros, do alto Xingu, no Mato Grosso, são um exemplo. Todos falam o karib, têm sua cultura preservada, mas são apenas 500 índios", diz Bruna Franchetto, do programa de documentação linguística do Museu do Índio da Funai no Rio de Janeiro.

Outro fator preocupante é a crescente influência da língua portuguesa. "A gente nota, entre os próprios cuicuros, que o idioma falado pelos velhos é mais rico. Os jovens já têm outra versão da língua, simples e com algumas palavras em português", diz Bruna. Em 2010, o grupo fez parte do projeto Dokumentation Bedrohter Sprachen (Dobes), apoiado pela Fundação Volkswagen, que patrocinou a documentação do karib.

O acesso a línguas documentadas de forma correta pode ajudar os índios a retomar sua cultura, mesmo que em determinado momento ela tenha sido esquecida. "Sempre tive poucas esperanças até que li que o povo judeu também perdeu seu idioma, o hebraico, que foi reaprendido por apenas uma família", diz Ailton, dos crenaques. "Só espero que os processos de documentação ocorram a tempo de aproveitarmos a memória dos idosos. Toda a vez que um deles morre é uma biblioteca viva que se acaba."









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