23 de jan. de 2012

Artigo: Gestão Cultural

A cultura da gestão, a gestão da cultura*



Nas chamadas sociedades tradicionais, o conhecimento era privilégio de uns poucos indivíduos, os “guardiões da verdade”. Eles eram a verdade, incorporavam tudo o que era preciso saber para o bom funcionamento das relações sociais, definiam de uma vez por todas os papéis que cada membro do grupo deveria exercer. O passado se refletia no presente que, por sua vez, antecipava, ad eternum, o futuro. Cada membro do grupo sabia o seu lugar. Não falo de uma sociedade distante, exótica, mas aquilo que se convencionou chamar de sociedade “ocidental”, cuja estrutura social se reproduziu até bem pouco tempo e continua se reproduzindo em certos grupos fundamentalistas (religiosos, políticos, étnicos). O indivíduo já nasce com uma profecia a cumprir, como conta aquela piada judaica: a mãe de gêmeos, ao ser perguntada como diferenciava um do outro, responde “o Jacó é o médico; o David é o engenheiro”. As relações sociais, neste contexto, caracterizam-se pela hierarquia, pela verticalidade.

Por sua vez, nas chamadas sociedades “pós-tradicionais”, expressão cunhada pelo sociólogo Anthony Giddens, a figura do indivíduo como valor é preponderante. Não necessariamente o indivíduo preconizado pelo liberalismo econômico ou no Leviatã, mas aquele que tem uma existência própria, que pode construir seu caminho, elaborar seu projeto de vida, ter uma biografia particular a partir de escolhas. Certas ou erradas, não importa, mas escolhas individuais. A partir daí, a figura do “guardião da verdade” arrefece, pois as relações sociais passam, ao menos no plano ideal, a ser regidas pela horizontalidade, pela igualdade de condições. As identidades passam a ser construídas, destruídas, reconstruídas, abandonadas, retomadas. Passam a ser matéria de escolha, não de imposição; de produção, não apenas reprodução. O conhecimento passa a ser múltiplo, não há então uma única e definitiva verdade, e as diversas verdades podem ser possuídas por quem quer que seja. A verdade está fora do ser humano, flui no espaço, e pode ser capturada por quem tiver competência de compreendê-la. As verdades são, acima de tudo, contestadas e contestáveis.Hoje, nas sociedades modernas ou “pós-tradicionais” (não gosto do termo “pós-moderno”, carregado de sentido negativo), a figura do “guardião da verdade” se transfigurou na do “gestor”. No caso das políticas públicas de uma forma geral e das políticas públicas de cultura de forma particular, o gestor trabalha com uma verdade construída a partir de um diagnóstico da realidade, um diagnóstico que aponta uma série de problemas sobre os quais se quer atuar para alcançar uma nova realidade, melhor do que a anterior. A verdade com a qual o gestor trabalha não é sua posse, é simplesmente uma ferramenta de trabalho com a qual está apto a trabalhar porque adquiriu a competência necessária para tanto. Se for o caso, e muitas vezes o é, deve compartilhá-la com outros gestores e, sobretudo e fundamentalmente, com a sociedade que sofrerá os impactos das mudanças que serão propostas.

O gestor das políticas públicas de cultura, particularmente aquele que trabalha para o Estado, não deve se colocar acima dos parceiros com os quais dialoga na elaboração das diretrizes e das ações a serem implantadas para a execução do planejado, a sociedade civil e a iniciativa privada. Ainda que seja sua obrigação, como representante do Estado brasileiro, a iniciativa de pensar e/ou problematizar a realidade que nos cerca e para a qual propostas mudanças. Ele não é o dono da verdade, ainda que seja seu papel produzir conhecimento (ou, se quisermos, a “verdade circunstancial”) necessário para e elaboração da política pública. A verdade de hoje é o diagnóstico bem elaborado, aberto ao escrutínio da opinião pública.

O gestor público é gestor da coisa pública, da coisa de todos. Ele representa o Estado, que é o conjunto de instituições e indivíduos componentes da sociedade, e não o dono do Estado. Ele detém um poder provisório, outorgado através de mecanismos democráticos, republicanos, universais, igualitários, se pensarmos nos concursos públicos. Ele, repito, detém o poder, mas não é seu dono. O poder e o conhecimento que este poder lhe permite adquirir pelo acesso a instrumentos específicos de pesquisa não deve ser utilizado em benefício próprio ou contra quem quer que seja. Tão grave quanto a utilização em benefício próprio é a omissão da informação, seja por questões políticas ou por incompetência administrativa. A eficiência da gestão da máquina pública é a garantia de uma sociedade democrática, que não se resume ao período eleitoral. O dia-a-dia, a rotina de funcionamento das instituições públicas deve, portanto, pautar-se pelo tríade planejamento/execução/avaliação.

A cultura da gestão não é fácil de ser implantada, visto que a premissa da eficiência vai de encontro a interesses secularmente estabelecidos por grupos que se apoderaram do Estado brasileiro como se este lhes pertencesse de fato e de direito. Sentem-se os donos do poder, para citar a obra do Raymundo Faoro. Uma burocracia ensimesmada cujos processos de trabalho são um fim em si mesmo, não tendo que ver com o alcance de metas objetivas ou prestação de contas a quem lhes paga o salário. Encastelados numa realidade paralela, reagem a qualquer tentativa de abrir para a “rua” a discussão sobre o que é de interesse público. E isto por um motivo simples: porque não há, para os ameaçados, interesse público, porque o público é confundido com o privado, porque a “casa” (espaço privado) incorpora a “rua” (espaço público). E, como todos sabemos, só convidamos, para a nossa casa, nossos amigos, quem confiamos.

Na “rua” estamos sozinhos, sem relações, é “cada um por si, Deus por todos”, estamos “ao Deus dará”. No entanto, na “rua” é onde compartilhamos, ou melhor, deveríamos compartilhar, uma identidade em comum, a cidadania. No Brasil, exemplos diários comprovam que a noção de cidadania ainda não está incorporada nos corações e nas mentes: cospe-se na calçada, joga-se lixo em qualquer canto, estaciona-se em locais proibidos, fala-se ao celular na direção de um carro, o motorista do ônibus liga o rádio apesar do aviso de que é proibido música no interior do coletivo. Aquele que deveria zelar pela lei é o primeiro a feri-la. Interesses públicos versus interesses privados: eis a eterna dicotomia presente na sociedade brasileira. Não é de se espantar, portanto, que esta confusão simbólica esteja presente na gestão pública.

É verdade que observamos mudanças neste estado de coisas. Hoje já é possível verificar os gastos públicos distribuídos pelos muitos ministérios que compõem o Poder Executivo num portal criado pelo próprio Estado (www.portaltransparencia.gov.br). A princípio, não há motivo para duvidarmos das informações ali prestadas, informações essas que devem ser obrigatórias e não entendidas como um favor do poder público. Afinal, é o dinheiro do contribuinte que financia e mantém em funcionamento a máquina pública.

No caso do Ministério da Cultura, qualquer cidadão pode acessar as informações relativas à lei de incentivo fiscal à cultura, a Lei Rouanet, através de um blog específico dentro do site do MinC (www.cultura.gov.br). Também é louvável a iniciativa de criação do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais – SNIIC, contendo dados de instituições e profissionais do setor cultural de todo o país. Isto sem falar na consolidação do Sistema Nacional de Cultura. Trata-se aqui do direito à informação, garantido pela Constituição Brasileira. Mas há um bom percurso a trilhar.

Por outro lado, o cidadão comum pouco entende ou compreende as somas vultosas que os portais da transparência do governo federal exibem para cada uma de suas instituições. São milhões e milhões de reais gastos em inúmeras rubricas que, por sua vez, englobam muitos e muitos programas e ações específicos. Por exemplo: de quê adianta saber que o MinC gastou tantos milhões de reais num dado Programa se o importante, mesmo, é destrinchar as informações dos projetos e ações que o constituem? Para o cidadão comum, que se inscreve nos editais das instituições vinculadas ao Ministério da Cultura, talvez seja de mais valia saber quantos inscritos houve no edital de fomento de dança, teatro ou circo; quantos inscritos houve na região pela qual concorreu, no seu município, para onde está indo o dinheiro público. É um direito dele, é um dever do gestor disponibilizá-las.

Cabe ao gestor apontar as virtudes e as falhas das ações, caso haja, de modo a corrigi-las. Este é o princípio da gestão eficiente: avaliar para melhorar, sempre. Seu compromisso é com a transparência, com a análise técnica das informações obtidas na execução das ações setoriais. A cadeira que ocupa, o computador que utiliza, as planilhas que preenche não são sua propriedade, daí a necessidade de se estabelecerem rotinas de trabalho padronizadas e compreendidas por todo o corpo gerencial, organizando as informações de modo a facilitar seu acesso por qualquer funcionário e a posterior interpretação e avaliação das ações, mantendo ou corrigindo os rumos de acordo com o preconizado pelas diretrizes institucionais.

Resta saber se o dirigente político reconhecerá a importância do conhecimento produzido pelo corpo técnico, comprometido com o bem público e, no caso específico do Ministério da Cultura, com a democratização do acesso à produção e ao consumo cultural, ou se, caso leia ou ouça aquilo que não quer ler ou ouvir, prefira ignorar as possíveis deficiências das ações institucionais com medo de “prejuízos políticos”.

Neste caso, parafraseando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, “esqueçam tudo o que escrevi”!



*Marcelo Gruman - Antropólogo e especialista em gestão de políticas públicas para a cultura.


Fonte: www.culturaemercado.com.br

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