BUMBA-MEU-BOI: O AUTÊNTICO TEATRO MARANHENSELio Ribeiro – Jornalista/ Pesquisador/Arte-Educador
Há uma grande força dramática nas principais expressões da cultura popular do Maranhão. Ninguém pode negar. O estado é, talvez, ainda o maior detentor da cultura popular chamada “ de raiz”, no Brasil. Em terras timbiras, os ciclos junino e do carnaval são a forma mais visível dessas manifestações. Um rico e diversificado painel resultante das culturas negras, brancas e índias.
Acalentado e reverenciado por estudiosos e “incultos”, o Bumba-meu-boi é, sabidamente por todos, visto como a principal marca da identidade cultural maranhense, expoente maior da hoje propalada “maranhensidade”. Apesar disso, embora com honrosas exceções, o fato é pouco estudado por antropólogos, sociólogos, pesquisadores em geral.
Para muitos, o esteio desta dança popular é o seu componente teatral, que a deixa de pé todos estes longos anos. Basta consultar um livro que se tornou indispensável para compreender, em detalhes, o bumba-meu-boi e toda sua complexidade dramática: “Bumba-meu-boi do Maranhão”, do jornalista, dramaturgo e membro da Academia Maranhense de Letras, Américo Azevedo Netto. Imprescindível.
Enfim, verdadeiramente, o auto é sustentáculo do Bumba-meu-boi maranhense. Um drama popular com todos os ingredientes indispensáveis para o deleite do publico e a própria manutenção da trama. O verdadeiro teatro popular.
Drama em sua essência, porque teatro, mas comédia enquanto gênero. Uma melhor compreensão requer apreender conceitos. Há uma certa concordância entre todos os estudiosos acerca das origens teatrais que apontam para o gênero Comédia como sendo o lado mais humano na arte da representação, enquanto a tragédia voltava-se mais para o aspecto divino. As comédias procuravam mostrar o homem em toda a sua dimensão, explorando suas malezas, seu lado risível, apoiando-se na sátira. É portanto aí, que as formas de manifestações teatrais populares, que, apoiadas na tradicional sátira grega, evoluem para os cômicos medievais, contemporaneamente aos autos religiosos.
Como o intento aqui não é, necessariamente, uma investigação de caráter histórico acerca do teatro, mas vamos, a partir dele, tentar localizar os primeiros fragmentos da origem ocidental das representações cênicas, apenas para tentar situar melhor, selecionamos um trecho de Brandão (1984):
"... Aristóteles, na passagem supracitada da Poética, declara que a comédia primitiva era improvisada e provinha dos cantos fálicos. Ora, esses cantos fálicos acompanhavam as Falofórias, procissões solenes em que se escoltavam um falo, símbolo da fecundidade e da fertilização do solo. Além do mais, deve-se observar que no vocábulo "komoidía", há um elemento que não é estranho à definição e à origem da Comédia: trata-se de "kômos", que tem muitos sentidos, mas o principal é o de grupo de festas, oque denominaríamos de cordão, bloco..."(1)
Para muitos pesquisadores, residem aí as origens do nosso carnaval. Não custa lembrar que, também nessa festa, diferentemente de todo o restante do Brasil, no Maranhão não são poucas suas formas teatrais, chamadas expressões dramáticas. Danças que se matem vivas através dos tempos, guardando em seu seio os rudimentos dos elementos teatrais como enredo, personagens, conflitos... vale citar o auto do Urso Caprichoso que, após uns poucos anos de ostracismo, ressurgiu e aí está vivinho, fruto do trabalho de resistência do saudoso Braz Carvalho. Uma dança dramática, com todos os seus elementos, em pleno carnaval maranhense.
Mas nosso objetivo aqui é o bumba, verdadeira dança dramática em toda sua pujança e resistência. Entendendo danças dramáticas, àquelas aferidas por Mário de Andrade:
"...As danças dramáticas se dividem em duas partes bem distintas: o cortejo e a parte dramática. O cortejo é marcado por peças que permitem a locomoção dos dançadores e a parte dramática é aquela que conserva mais fixamente os seus textos, transmitidos oralmente ou conservados em manuscritos..."(2)
Durante algum tempo, o auto do bumba-meu-boi (a comédia, ou o drama; enfim, seu teatro) ficou de escanteio, meio esquecido. Mesmo hoje, com seu resplandecer, ainda alguns grupos deixam de apresentá-los nos arraiais. Precisam cumprir vários contratos, marcar presença em dois, três locais diferentes numa mesma noite. Nesse momento, impera a ditadura do espetáculo coreográfico, a dança se sobrepõe aos demais elementos da representação. Mas, atualmente, é mesmo na cerimônia da matança, o período da “morte do boi”, nos meses de setembro a outubro, encerrando o ciclo junino, que a maioria apresenta a encenação completa. Aí sim, pode-se apreciar todo o drama: o enredo, personagens, conflitos, figurinos e, cenários, aqueles elementos verdadeiramente da raiz de seus promotores, a própria comunidade onde se originam os brincantes e os grupos. Autentico teatro popular.
Para propiciar melhor compreensão, cabe-nos recorrer a uma definição de autos, esta forma de teatro popular, muito freqüente em diversos ciclos, no Maranhão inclusive no carnaval, a exemplo do cordão do Urso Caprichoso, mencionado anteriormente. Recorremos à conceituação mais comumente aceita, contida no Dicionário do Folclore Brasileiro de Câmara Cascudo, que passamos a transcrever:
"Auto. Forma teatral, de enredo popular, com bailados e cantos, tratando de assunto religioso ou profano, representado no ciclo das festas do Natal (dezembro-janeiro). Lapinhas, pastoris, fandango ou marujada, chegança ou chegança de mouros, bumba-meu-boi (...)
O gênero popularizou-se. Para ele convergiram as danças dramáticas, algumas realizadas à porta ou adros das igrejas em Portugal, bailados com espadas, desfiles e apresentações corporativas (...) Dos autos populares brasileiros o mais nacional, como produção, é o bumba-meu-boi (...)
A origem erudita ligar-se-á, quanto aos autos de enredo religioso, aos miracles e mystéres, estes saídos da liturgia das festas do Natal e Páscoa, e aqueles cânticos em louvor a santos (...)
No Brasil, as mais antigas menções informam que os autos eram cantados às portas das igrejas, em louvor à Nossa Senhora do Rosário (...)
Depois levavam o enredo, com as danças e cantos, nas residências de amigos ou na praça pública, num tablado. Alguns autos reduziram-se a um puro bailado, sem assunto figurado, e se fixaram no carnaval, como o maracatu pernambucano, que não parece ter sido auto (...)"(3)
O AUTO – Enredo de fácil assimilação, conta a historia de Nêgo Chico, vaqueiro da fazenda, e sua mulher Catirina. Esta, prenhe, deseja comer a língua do boi; este o novilho predileto do patrão. Sucessão de fatos, acontecimentos, encontros e desencontros, encatamento. Uma trama cheia de conflitos, urdida com a melhor carpinteira teatral, seguindo a risca qualquer receituário, desde os elaborados gregos aos improvisos “lazzi” da Comedia Dell’Arte medieval.
PERSONAGENS – Protagonizada por Chico e Catita (oba, pessoas do povo, com seus desejos, angústias, emoções, sentimentos... uma aula de dramaturgia!), a trama está recheada de personagens: índios (guerreiros, não os apolíneos, orquestrados hoje), vaqueiros, curandeiros/pajés, o metamorfoseado boi, síntese da máscara dionisíaca: homem-bode, homem-boi; e, claro, o indispensável elemento místico, o cazumbá (os brincantes chamam cazumba). Este último, legítimo representante dos medievais autos, dos trágicos gregos, cuja principal função é promover a redenção dos pecados terrenos, a reabilitação do desequilíbrio cometido; a possibilidade da ressurreição, perfeito!
Não contente com o comum, o previsível, a incrível capacidade criadora do povo maranhense quis, e foi mais além, criou os sotaques; Zabumba, Matraca, Orquestra e, mais recentemente, o Costa de Mão. Ritmos, indumentárias, coreografias, elementos diferenciados para uma mesma dança, a mesma trama, o mesmo ritual. O resultado está aí hoje, resistindo ao tempo, digerindo as influências, incorporações, renovando-se, como é próprio da cultura feita pelo povo, amalgamando-se. Ela é viva, dinâmica, e pulsa.
(1) BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego - Tragédia e Comédia. Ed. Vozes, Petrópolis, 1984, p. 73
(2) ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil. Ed. Itatiaia. Belo Horizonte. 1982. I Tomo. p.57
(3) CASCUDO, Luiz da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Ediouro. Rio de Janeiro, 1972, 3ª ed., p.115
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