BELEZA E FEIÚRA NO CARNAVAL
Eugênio Araújo (*)
Há tempos espero pela oportunidade de discutir publicamente tema tão espinhoso e ao mesmo tempo tão interessante. Ela surgiu essa semana, dia 02/02/2011, depois da fala do nosso Secretário Estadual de Cultura durante reunião com os grupos carnavalescos da cidade, no Teatro Alcione Nazaré. Na platéia estavam representantes de escolas de samba, tambor de crioula, tribos de índio, blocos organizados (as ex-charangas), blocos tradicionais, blocos alternativos (blocos de trios), blocos afros, músicos, entre outros. Bulcão falou abertamente sobre “o baixo nível estético” das nossas brincadeiras, disse que tem de melhorar o visual, que tem muita brincadeira mal vestida, musicalmente ruim, que estão criando grupos sem o menor critério, até o tambor de crioula perdeu a essência: ”Não vou aceitar apresentações sem fantasias, quem não gosta de alguém bem produzido, perfumado, cheiroso? Os turistas querem olhar o belo, organizado e bonito" – disse Bulcão e concluiu ameaçando os que não se apresentarem bem produzidos: o cachê será cortado.
Que coisa mais estranha, esse negócio de "pedir pelo estético" no carnaval! Será que não foi um erro de expressão? De certa forma toda manifestação humana é estética: do ferreiro que faz seu portão ao escultor premiado Cordeiro do Maranhão há várias gradações no manuseio do ferro, umas melhores outras piores. Quanto melhor e mais original mais se aproxima daquilo que se chama ARTE, quanto mais corriqueira e banal ou ineficiente, tal produção não pode ser assim denominada. Mas o fato é que em tudo que o homem faz há um tanto de estética. Até num assassinato, como provam os filmes sobre serial killers. Portanto, a solicitação de um secretário de cultura pelo estético no carnaval pode ser interpretada de várias formas além da obviedade que a motivou.
Em tudo e por tudo, o carnaval por si só já é uma festa com alto grau de esteticidade. Tudo ali é forma, é desvio do banal, do comum, do padrão, tudo é proposta de racionalidade de cores, volumes, harmonias múltiplas. Isso é estética. O que será que o secretário quis dizer quando detecta uma "falta de estética" no carnaval ludovicense? Muitas outras coisas que talvez nem ele mesmo tenha imaginado.
Primeiro, há uma grande classificação teórico-prática das festas carnavalescas em dois grupos: o apolíneo e o dionisíaco – a primeira deriva das festas em homenagem a Apolo, deus da forma, da arte, da beleza, da musica, da harmonia; a segunda deriva das festas em homenagem ao deus Dionísio, deus da festa, do desregramento, do exagero, do gozo, do prazer, do vinho, da embriaguez. São festas muito diferentes, que a civilização ocidental moderna equacionou em festa só: o carnaval. No entanto ainda há resquícios dessa divisão original. Algumas cidades preferem festas mais ordenadas e com senso de beleza mais apurado; outras preferem festas com acento mais na diversão e na bebedeira. Segundo alguns, a festa apolínea seria mais "estética" que a festa dionisíaca, segundo outros as duas festas têm apenas estéticas diferentes. Mas o fato é que a classificação continua operante. Rio de Janeiro é um exemplo da primeira, Salvador um exemplo da segunda. Outras cidades misturam tudo isso e tentam procurar um equilíbrio subjacente – que eu sinto ser o caso de São Luís.
Algumas brincadeiras têm acento mais apolíneo como as escolas de samba, os blocos tradicionais e organizados; outras brincadeiras tem acento dionisíaco, como o entrudo, o bloco de sujo, a charanga, o bloco de trio. Todos têm sua vez no carnaval. Num certo sentido todos professam determinada estética – umas podem ser consideradas mais agradáveis que outras. Entre sentar na arquibancada e ver um desfile da Favela do Samba ou ir para Madre Deus ser sujo de maizena há uma grande diferença, mas ambas são formas de gozar a experiência estética do carnaval.
O que terá sentido nosso secretário não seria exatamente a falta desse senso estético mais apurado que só pode ser desenvolvido pelos grupos que se dedicam ao carnaval apolíneo, como escolas de samba e alguns blocos? Mas terá ao mesmo tempo esquecido nosso secretário que esse abandono gradual do "senso estético mais apurado" foi estimulado pelo seu próprio grupo político ao longo dos últimos 20 anos? Terá esquecido nosso secretário que a política cultural vem tentando acabar com as escolas de samba desde a década de 1990? Com elas também foram atacados os blocos organizados, que seguiam a mesma prescrição de enredo/samba-enredo e fantasia mais elaborada. O que restou de sofisticação visual no nosso carnaval está nas mãos dos Blocos Tradicionais, que têm sido privilegiados ao longo dos anos com verbas sempre proporcionalmente maiores que outras agremiações – por isso suas fantasias são as melhores.
Bem, mas se finalmente nosso secretário acha que nosso carnaval está "enfeiando" – o que já vem de muito tempo – talvez seja o momento de repensar a política de apoio às manifestações que realmente se preocupam com o lado "estético" do carnaval. O carnaval de rua não será, mesmo com uma decoração de 1 milhão de reais. Só decoração não faz a beleza de um carnaval. É preciso que sob os belos portais iluminados desfilem brincantes igualmente preocupados com sua aparência. Caso contrário, percebe-se algo fora do lugar: um cenário caro para figurantes baratos.
Talvez a "falta de estética" da nossa festa carnavalesca da qual reclama nosso secretário seja fruto de anos e anos de investimentos mal direcionados, privilégios concentrados em certos grupos, desmantelamento econômico e moral de outros. Falta beleza no carnaval maranhense? Talvez não. Cada povo tem o carnaval que merece. Assim como os governantes, os políticos e o sistema de governo. Não é só o carnaval do Maranhão que é feio, o Maranhão todo vem se tornando um antro de feiúra enraigada. Enquanto o secretário sente a falta de beleza apenas no carnaval eu sinto uma falta de beleza generalizada, durante o ano inteiro, em todos os níveis e instâncias. Cobrar a beleza apenas no carnaval é um contrasenso. Devemos trabalhar pela beleza de toda sociedade, durante o ano inteiro. Mudar o carnaval pode significar mudar tudo isso. Estaremos a fim?
(*) Eugenio Araújo - Prof. Dr. Do Departamento de Artes/UFMA.
Eugênio Araújo (*)
Há tempos espero pela oportunidade de discutir publicamente tema tão espinhoso e ao mesmo tempo tão interessante. Ela surgiu essa semana, dia 02/02/2011, depois da fala do nosso Secretário Estadual de Cultura durante reunião com os grupos carnavalescos da cidade, no Teatro Alcione Nazaré. Na platéia estavam representantes de escolas de samba, tambor de crioula, tribos de índio, blocos organizados (as ex-charangas), blocos tradicionais, blocos alternativos (blocos de trios), blocos afros, músicos, entre outros. Bulcão falou abertamente sobre “o baixo nível estético” das nossas brincadeiras, disse que tem de melhorar o visual, que tem muita brincadeira mal vestida, musicalmente ruim, que estão criando grupos sem o menor critério, até o tambor de crioula perdeu a essência: ”Não vou aceitar apresentações sem fantasias, quem não gosta de alguém bem produzido, perfumado, cheiroso? Os turistas querem olhar o belo, organizado e bonito" – disse Bulcão e concluiu ameaçando os que não se apresentarem bem produzidos: o cachê será cortado.
Que coisa mais estranha, esse negócio de "pedir pelo estético" no carnaval! Será que não foi um erro de expressão? De certa forma toda manifestação humana é estética: do ferreiro que faz seu portão ao escultor premiado Cordeiro do Maranhão há várias gradações no manuseio do ferro, umas melhores outras piores. Quanto melhor e mais original mais se aproxima daquilo que se chama ARTE, quanto mais corriqueira e banal ou ineficiente, tal produção não pode ser assim denominada. Mas o fato é que em tudo que o homem faz há um tanto de estética. Até num assassinato, como provam os filmes sobre serial killers. Portanto, a solicitação de um secretário de cultura pelo estético no carnaval pode ser interpretada de várias formas além da obviedade que a motivou.
Em tudo e por tudo, o carnaval por si só já é uma festa com alto grau de esteticidade. Tudo ali é forma, é desvio do banal, do comum, do padrão, tudo é proposta de racionalidade de cores, volumes, harmonias múltiplas. Isso é estética. O que será que o secretário quis dizer quando detecta uma "falta de estética" no carnaval ludovicense? Muitas outras coisas que talvez nem ele mesmo tenha imaginado.
Primeiro, há uma grande classificação teórico-prática das festas carnavalescas em dois grupos: o apolíneo e o dionisíaco – a primeira deriva das festas em homenagem a Apolo, deus da forma, da arte, da beleza, da musica, da harmonia; a segunda deriva das festas em homenagem ao deus Dionísio, deus da festa, do desregramento, do exagero, do gozo, do prazer, do vinho, da embriaguez. São festas muito diferentes, que a civilização ocidental moderna equacionou em festa só: o carnaval. No entanto ainda há resquícios dessa divisão original. Algumas cidades preferem festas mais ordenadas e com senso de beleza mais apurado; outras preferem festas com acento mais na diversão e na bebedeira. Segundo alguns, a festa apolínea seria mais "estética" que a festa dionisíaca, segundo outros as duas festas têm apenas estéticas diferentes. Mas o fato é que a classificação continua operante. Rio de Janeiro é um exemplo da primeira, Salvador um exemplo da segunda. Outras cidades misturam tudo isso e tentam procurar um equilíbrio subjacente – que eu sinto ser o caso de São Luís.
Algumas brincadeiras têm acento mais apolíneo como as escolas de samba, os blocos tradicionais e organizados; outras brincadeiras tem acento dionisíaco, como o entrudo, o bloco de sujo, a charanga, o bloco de trio. Todos têm sua vez no carnaval. Num certo sentido todos professam determinada estética – umas podem ser consideradas mais agradáveis que outras. Entre sentar na arquibancada e ver um desfile da Favela do Samba ou ir para Madre Deus ser sujo de maizena há uma grande diferença, mas ambas são formas de gozar a experiência estética do carnaval.
O que terá sentido nosso secretário não seria exatamente a falta desse senso estético mais apurado que só pode ser desenvolvido pelos grupos que se dedicam ao carnaval apolíneo, como escolas de samba e alguns blocos? Mas terá ao mesmo tempo esquecido nosso secretário que esse abandono gradual do "senso estético mais apurado" foi estimulado pelo seu próprio grupo político ao longo dos últimos 20 anos? Terá esquecido nosso secretário que a política cultural vem tentando acabar com as escolas de samba desde a década de 1990? Com elas também foram atacados os blocos organizados, que seguiam a mesma prescrição de enredo/samba-enredo e fantasia mais elaborada. O que restou de sofisticação visual no nosso carnaval está nas mãos dos Blocos Tradicionais, que têm sido privilegiados ao longo dos anos com verbas sempre proporcionalmente maiores que outras agremiações – por isso suas fantasias são as melhores.
Bem, mas se finalmente nosso secretário acha que nosso carnaval está "enfeiando" – o que já vem de muito tempo – talvez seja o momento de repensar a política de apoio às manifestações que realmente se preocupam com o lado "estético" do carnaval. O carnaval de rua não será, mesmo com uma decoração de 1 milhão de reais. Só decoração não faz a beleza de um carnaval. É preciso que sob os belos portais iluminados desfilem brincantes igualmente preocupados com sua aparência. Caso contrário, percebe-se algo fora do lugar: um cenário caro para figurantes baratos.
Talvez a "falta de estética" da nossa festa carnavalesca da qual reclama nosso secretário seja fruto de anos e anos de investimentos mal direcionados, privilégios concentrados em certos grupos, desmantelamento econômico e moral de outros. Falta beleza no carnaval maranhense? Talvez não. Cada povo tem o carnaval que merece. Assim como os governantes, os políticos e o sistema de governo. Não é só o carnaval do Maranhão que é feio, o Maranhão todo vem se tornando um antro de feiúra enraigada. Enquanto o secretário sente a falta de beleza apenas no carnaval eu sinto uma falta de beleza generalizada, durante o ano inteiro, em todos os níveis e instâncias. Cobrar a beleza apenas no carnaval é um contrasenso. Devemos trabalhar pela beleza de toda sociedade, durante o ano inteiro. Mudar o carnaval pode significar mudar tudo isso. Estaremos a fim?
(*) Eugenio Araújo - Prof. Dr. Do Departamento de Artes/UFMA.
Reflexição precisa e necessaria, parabens eugenio
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