O Conselho da Bahia e a construção da democracia
*Chalini Torquato Gonçalves de Barros
Tomou posse na terça-feira [10/01] o Conselho Estadual de Comunicação da Bahia. De caráter consultivo e deliberativo, o colegiado é previsto enquanto medida para garantir o direito à comunicação e à informação pelo Art. 277 da Constituição Estadual de 1989 e tem a função de formular a política baiana de comunicação social. Para isso, é composto por sete representantes do governo além de vinte da sociedade civil advindos dos setores empresariais, movimentos sociais, organizações não-governamentais e sindicatos (ver aqui entidades que integram o conselho). A composição do órgão, inédito no Brasil em seu caráter estadual, foi decidida em eleição realizada em novembro na Fundação Luís Eduardo Magalhães (Flem). Presidido pelo secretário de Comunicação Social, Robinson Almeida, o conselho se propõe ser um espaço para que os diversos atores interessados possam discutir os problemas e rumos da comunicação na Bahia.
A criação de conselhos faz parte das pautas que compõem as diversas agendas pela democratização da comunicação desde, pelo menos, a Constituição de 1988, e vem responder a uma intensa demanda civil (de acadêmicos, sindicatos, movimentos sociais, empresários etc) estando, inclusive, prevista dentre as propostas resultantes da I Conferência Nacional de Comunicação (veja aqui uma síntese da trajetória de implantação do Conselho de Comunicação da Bahia).
A trajetória legislativa do setor de comunicação no Brasil revela um cenário impregnado de práticas políticas democraticamente questionáveis que se reinventam ao longo das décadas, estabelecidas sob o manto do clientelismo e paternalismo políticos. São práticas que se reafirmam através do impedimento de transformações efetivas tanto no que diz respeito ao estímulo à competitividade, com a desconcentração do setor e a possibilidade de entrada de novos atores no mercado, quanto ao estabelecimento de diretrizes que exijam a responsabilização social daquelas empresas que usam da comunicação como meio de faturamento.
Limites incompatíveis com a democracia
A Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert) foi criada em 1962 para defender os interesses das emissoras de radiodifusão quando da aprovação do Código Brasileiro de Telecomunicações, e desde então utiliza seu poder político com intenso lobby na defesa, especialmente, dos interesses da TV Globo. Bloqueios históricos à reestruturação do modelo nacional de comunicações são paradigmáticos, como ocorreu na Constituinte de 1988, quando o Conselho Nacional de Comunicação, originalmente concebido como um colegiado independente e deliberativo, limitou-se a um órgão consultivo do Congresso, o Conselho de Comunicação Social. Tal interferência ocorre recorrentemente como o foi nas discussões acerca da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), do modelo brasileiro de TV Digital, da conformação de uma Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa, da realização da Conferência Nacional de Comunicação, em 2009, e da recente discussão acerca de um marco regulatório para as comunicações.
Basta, portanto, acompanhar as discussões históricas acerca de políticas públicas de comunicação no Brasil para se deparar com a notável influência da Abert, que captura as funções do Estado para a conformação do setor e manutenção do status quo de seus representados, líderes políticos e econômicos. De tal modo, empresários de radiodifusão fazem uso de seu poder de barganha dentro do que Hellman, Jones e Kaufmann denominaram de “teoria da captura” (ver aqui), ou seja, essas firmas têm sido capazes de influenciar, dada sua representatividade política, a formulação das regras de mercado de acordo com suas prioridades.
É a Abert também que acusa de inconstitucional a criação do Conselho Estadual de Comunicação na Bahia (ver aqui). E mais uma vez o argumento de ameaça à liberdade de expressão se repete afirmando que “a proposta de criação dos conselhos nos Estados e municípios, sob o pretexto ideológico de garantir o ‘controle social da mídia’, pretende apenas impor à imprensa limites incompatíveis com a democracia que conquistamos no Brasil”.
Reestruturação de políticas públicas
A redemocratização brasileira, considerando uma perspectiva cronológica ampliada, é um processo recente, que conviveu com a crise de legitimação do Estado intervencionista na década de 1970, repercutindo e se ajustando até os dias atuais.
O autoritarismo militar cultivou no Brasil uma baixa propensão participativa por conta das formas verticais de organização da sociedade política, como a concentração de poder nas propriedades de terra, o histórico de clientelismo no sistema político etc. A partir dos anos 1970 é possível observar o fortalecimento de uma sociedade civil mais autônoma e democrática. Pautando-se por sentimentos políticos e culturais da soberania e da nacionalidade, quatro movimentos se tornariam simbólicos dessa cidadania ativa e forte mobilização democrática: a campanha pelos direitos na Assembleia Constituinte, a das Diretas Já, a do impechmant de Fernando Collor e a eleição do presidente Lula.
O processo constituinte, em especial, foi significativo neste contexto, quando formas híbridas de participação (que mesclam Estado e sociedade civil) foram criadas e ganharam notoriedade, como é o caso dos conselhos (hoje existem cerca de 10 mil conselhos no Brasil). A criação desses espaços estimulou a participação civil em políticas públicas à medida que ampliou a presença da sociedade, aprimorando a estrutura da representação democrática no Brasil.
Com a transição ao regime democrático proliferaram, pois, as organizações da sociedade civil (OSC). Sua legitimidade estava conferida a partir da descentralização oferecida pela Constituição de 1988 que proporcionou às administrações municipais recursos suficientes além de independência política no que diz respeito à reestruturação de políticas públicas – como ocorreu com a homologação da Constituição baiana de 1989 que prevê o conselho estadual de comunicação.
Instâncias públicas de regulação
Durante a Constituinte de 1988 houve maior abertura para as práticas participativas que estavam garantidas formalmente e as ações de organização da sociedade civil foram fundamentais para a concretização da democratização do país. A luta por demandas de movimentos sociais no período de redemocratização (como o das mulheres, ecológicos e de direitos humanos), consagrando alguns formatos participativos (conselhos, fóruns, instrumentos jurídicos etc), foi responsável pela inclusão de novos atores na formulação e implementação das políticas públicas de modo a legitimar essas demandas com a institucionalização de sua participação, transferindo para eles parte da responsabilidade pública.
Os movimentos sociais tiveram uma ligação bastante próxima com o surgimento de novas formas de direito – como o direito à comunicação – que parecem apontar para um novo modelo de cidadania em que o cidadão se reposiciona diante do Estado, não sendo apenas seu cliente, mas um questionador de sua lógica de ação, encontrando, para isso, novas formas de participação nas decisões, como é o caso dos conselhos.
Os conselhos, portanto, estabelecidos como instituições híbridas, compostas por atores do Estado e sociedade civil, emergiram de legislações infraconstitucionais federais que os estabeleceram em diversas áreas e níveis administrativos. Em países de regime democrático é comum que conselhos interfiram no setor de comunicação. Trata-se de um instrumento legítimo enquanto Meio de Assegurar a Responsabilidade Social da Mídia (M.A.R.S – termo proposto por Claude-Jean Bertrand), ou seja, enquanto meio usado para tornar os meios de comunicação responsáveis perante o público. Enquadram-se nesta categoria: espaços de correção, comentários e críticas (dentro e fora dos veículos), como publicação de “cartas dos leitores”, o uso de ombudsman, observatórios, relatórios, ou mesmo livros, pesquisas acadêmicas, estudos de opinião, mídias pequenas e publicações alternativas, comitês e outras instâncias públicas de regulação (formadas por profissionais e/ou usuários) etc.
Um novo patamar
A ampliação de espaços deste tipo para garantir a diversidade e qualidade da informação nos meios de comunicação ocorre ainda timidamente no Brasil, muito em função da cortina de fumaça que se faz pela própria mídia aos olhos da sociedade. A consequência histórica disso foi a limitação de direitos fundamentais à democracia como o direito à informação, a própria liberdade de expressão, prejudicada pela censura empresarial, e o recém-retomado direito à comunicação.
Se democracia é entendida uma construção cidadã, uma idealização valorativa que sobrepõe o mero instrumento de escolha de representantes através do voto e se são reconhecidos os problemas de afastamento do cidadão da política, a adoção de instrumentos de participação como o conselho se faz imperativa. A penetração das demandas privadas, legitimadas no seio social, no esquema burocratizado, encastelado por institucionalizações formais, aproxima os indivíduos do processo decisório, compartilhando com eles parte da soberania deliberativa antes restrita aos políticos profissionais – aqueles que compõem a elite tecnocrática.
O Conselho de Comunicação Social da Bahia nasce com inúmeras demandas (sociais, políticas, empresariais) e, com isso, um inédito espaço de discussões conflituosas tenderá a ser dotado de suas próprias insuficiências. A experiência é feita desta construção conjunta, mas o espaço está dado, partamos de um novo patamar. Aqueles que o considerarem insuficiente terão de sair de seu comodismo e lembrar de seu papel de cidadãos há tanto tempo delegado a outros e substituído pelo de consumidores atrás do controle remoto.
(*Doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBA e professora)
Publicado no Observatório da Imprensa em 17/01/2012
bom!
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