23 de jan. de 2012

Carnaval: Artigo de Carlos de Lima

Carnaval dos Bons Tempos*

"Meus amigos.
Este encontro deveria ser mais festivo e muito alegre. A perda de um grande amigo nos enuvia a alma e nos mareja os olhos. Não choremos, porém, a morte do poeta. Seja esta reunião um daqueles elos de que nos fala em seus versos, o elo que amarra os sonhos que sonhamos todos ao relembrar o precioso JOSÉ WALDELINO CÉCIO SOARES DIAS, ele que foi todo coração – "coração onde cada amigo cabia por inteiro", na frase feliz de Laura Amélia.

Este CD é um lembrança, uma homenagem e um registro lembrança dos tempos dourados da juventude "que os anos não trazem mais", homenagem a estes desconhecidos compositores bissextos e que já se foram: registro de um momento do Carnaval maranhense. Que momento! Que Carnaval! Pleno de alegria, espontâneo e sem cuidados, sem violência e sem brigas. (Bem, com algumas briguinhas mas, logo contornadas, os brigões, ao fim da festa, bebendo juntos e abraçados.)

Às vezes, até as rivalidades se traduziam em música, como no caso que passo a contar: meu bloco, o "Coringa", nasceu de outro chamado "Legionários", cuja fantasia era por demais incômoda, a farda da Legião Estrangeira, com botas, culotes, talabartes, albornós, etc. Então mudamos para o fofão tradicional que eu desde menino via colorir as ruas da cidade, era mais livre, mais alegre, mais carnavalesco. Foi a conta para o Manuel Furtado, meu saudoso amigo Duquinha, fazer uma música acusando-nos de imitar o bloco dele. Fui designado pelos companheiros para responder à provocação. E não me fiz de rogado:

O "Coringa" prá criar cartaz não precisa imitar ninguém:
todo circo que aqui passa tráz
o fofão que o "Vira-Lata" tem
Também uso calça e palitó
e na praia o natural calção;
quando fico no banheiro só
não me diga que é imitando Adão!

Duquinha faleceu e, infelizmente, não consegui de seus parentes resgatar a música provocadora.
Bons tempos! Saudosos tempos de uma cidade feliz, pacata e descuidada, onde, no calor, dormia-se de janelas abertas... para isso as folhas eram cortadas ao meio, fechavam-se só as partes de baixo.

Ladrão? Um: "Pé Gordo". Comunista? Maria Aragão. Dizia-se até que, à ordem de – Prender comunistas! Ela já ia, espontaneamente, entregar-se na delegacia.
Havia quatro blocos ditos "de sociedade": "Vira-Lata", o mais antigo, do pessoal do London Bank (Sim, senhores, já houve aqui um bando inglês, onde hoje está o BASA, e um a companhia de navios também inglesa, a Booth Line) com gerentes ingleses e funcionários maranhenses. Foram Da Costa, Carvalho, Zé Freitas, e mais os Habibes, Duquinha, Nilo Ramos, Vera-Cruz Marques, Alcir Carvalho, os Lobos ( Lobinho e Lobão), João Moucherek e muitos outros, que fizeram o "Vira-lata". O "Coringa" reunia os irmãos Meireles – Orlando, Jorge e Clóvis – e ainda eu, Ivaldo e José Santos, Zacarias Marques, Juarez Góis, Fidélis, Zé Orlando Jucá de Castro, Raul Guterres, Olavo Carvalho, os irmãos Fernandes, etc., etc. O "Oba-ôba", pertencia aos carcamanos, capitaneados pelo Nazar – Emílio, Michel, Fausto e Cláudio Vasconcelos, Paulino e José Carvalho, Mário Rego... tantos... tantos... (Hoje tão poucos!).

Além destes havia os cordões de moças ligados aos clubes sociais, o do "Casino Maranhense", nos altos de onde está a loja "Sabrina", na rua Grande; na mesma rua (atualmente o edifício "Duas Nações") erguia-se o sobradão de "Os Lunáticos", clube dos Menezes (Joaquim, Almir, Rui, Arlino); do "Grêmio Lítero-Recreativo Português", a velha sede ainda resiste ali, no Largo do Carmo, e o "Clube Sírio-Libanês" ficava na mesma praça, bem defronte da igreja.
Depois vinham os blocos do povo, chamados "turmas", as famosas "Turma do Quinto", da Madre-Deus, e a "Turma de Mangueira", no João Paulo.

A peculiaridade destes blocos e turmas é que, com algumas exceções, fugiam das "Jardineiras" e "Amélias" cariocas e faziam as próprias músicas, das quais este disco é uma pálida amostra.

O Carnaval se concentrava do Largo do Quartel (hoje Praça Deodoro) e se espraiava pela rua da Paz, rua Grande e rua dos Remédios, por onde desfilava o "corso". Custa acreditar que por esta via estreita houvesse mão e contra-mão de trânsito, os veículos indo até o fim e retornando da igreja dos Remédios. Pois ainda, por entre eles, perambulavam os blocos, os cordões e uma multidão de foliões de toda ordem. Nenhuma batida, nenhum atropelamento...

Já não era o "corso" que encantou a minha infância, o dos automóveis de capotas arriadas onde sentavam as moças fantasiadas, cantando alegremente, os caminhões convertidos em carros alegóricos... Lembro-me bem de um, transformado em grande elefante que abanava as orelhas e virava a cabeça, à direita e à esquerda, cumprimentando o pessoal, e de outro que tinha no meio um moinho holandês, cheio de luzes, e era o carro das raparigas da zona, com as saias enormes para fora dos taipás, as "holandesas", quase todas pretas retintas, mas... ostentando tranças louríssimas, derramadas das coifas de tafetá.

Não, não era mais o corso de antigamente mas, se os automóveis agora eram fechados sem graça, os corações continuavam abertos à folia, serpentinas e confetes continuavam a cruzar-se no ar, de janela a janela, das janelas para a rua, da rua para as janelas... O cheiro dos lança-perfumes seduzia...

Disse o Bernardo Almeida e disse-o bem: Éramos felizes e não sabíamos!

Assumi um compromisso comigo mesmo e com memória dos companheiros mortos. Está cumprida minha missão. Guardei na lembrança letra e música daqueles tempos; mais que um arquivo foi meu coração o relicário dessa felicidade passada. Há dores que dá gosto sofrer. Era eu o único depositário destas músicas e destas letras e não podia morrer sem deixá-las impressas. Agora desobrigado estou. Batalhei por mais de dez anos. Amolei muita gente. Cheguei a pedir à nossa Governadora, ela também foliã, em meio a uma solenidade pública, quebrando o protocolo. Prometeu-me. E cumpriu a promessa: o CD aí está. Muito obrigado.

Devo, porém, esclarecer um mal-entendido: desde quando comecei a importunar um e outro, o CD foi batizado como – o disco de Seu Carlos, com enorme injustiça. Quem entende de música sabe que as minhas são as menos significativas. O disco não é meu, é do Carnaval Maranhense, é dos companheiros que tombaram. Tive o privilégio de pertencer a esse grupo de poetas, a capacidade de guardar de memória as composições, de lutar para que se tornassem um registro. O mérito é todo dos saudosos amigos que lhe emprestaram o brilho de sua sensibilidade e seu talento.

Agradeço ao Privado e ao Brandão, os dois que fizeram a primeira gravação em fita, com toda a paciência, repetindo e repetindo, para transpor as músicas desta minha bela voz para uma cousa audível... Muito obrigado. Agradeço ao maestro Pinheiro que desbravou o terreno escrevendo as primeiras partituras, à Fundação Cultura, na pessoa de seu Presidente Luís Bulcão; a Ubiratã Souza, ao Godão, ao Welington, ao Valdelino, que fez a bonita apresentação no encarte; à direção e aos colegas do Banco do Brasil que, prazerosamente, incluíram este evento no seu Circuito Cultural. Obrigado à professora Michol que nos acolhe tão carinhosamente nesta casa e a todos os que aqui comparecem, com destaque para D. Leonete, viúva do Fidélis Fonseca, D. Iara, viúva do Jorge Meireles e D. Edna, representante da família do Manuel Furtado. Obrigado de todo o coração.


* Discurso pronunciado por Carlos de Lima quando do lançamento do CD "Carnaval dos Bons Tempos", no Centro de Cultura Popular "Domingos Vieira Filho", em 9 de Novembro do ano 2000, em presença da senhora Governadora do Maranhão, D. Roseana Sarney Murad.

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