11 de jul. de 2012

A literatura na poltrona, impressões de um observador literário, por José Castello - José Castello: O Globo

Uma defesa da imaginação

por José Castello 

        Leio, com interesse, mas também com cautela, as máximas do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) a respeito da arte de ser feliz. Uso uma edição sintética da Martins Fontes, de 2008, organizada por Franco Volpi. Sim: vez por outra, de modo discreto e realista, é preciso considerar a hipótese da felicidade. A literatura é um projeto de felicidade. Existem muitos outros. Não vivemos sem isso: sem o desejo de ser feliz. Ele nos empurra. Preenche nosso tempo. Nos sopra um pouco de vida. Quem vive sem respirar?

        Interesso-me, em particular, pela célebre "Máxima 18", em que Schopenhauer nos fala dos perigos da imaginação. Pensar nesses perigos, para um escritor, é como tomar uma vacina. É proteger-se um pouco daquilo mesmo que o alimenta e o leva a avançar. Pois bem: contra eles, prescreve o filósofo, "é necessário refrear a imaginação em todas as coisas que dizem respeito ao nosso bem-estar e ao nosso mal-estar, às nossas esperanças e aos nossos temores". Sugere ele que se tenha, diante da imaginação, a mesma cautela que os escritores cultivam diante da filosofia. Sempre suspeitei dos conceitos. Não, não é isso: sempre acreditei que os conceitos estão infiltrados de sonhos.

        Para bem e para o mal _ e os escritores, na verdade, não se cansam de enfrentar
isso _ a imaginação, que é bela, é também perigosa, Schopenhauer nos diz. Se nos apegamos à fantasia de uma vida feliz, a realidade, por contraste, logo se torna indigesta. Se, ao contrário, a consideramos negativa, ele prossegue, nos tornaríamos prisioneiros de previsões funestas, que paralisam e machucam a vida. Nem tanto, nem tão pouco. Propõe o filósofo, talvez, o caminho do meio. Mas também ainda não sei se é bem isso...

        Observa Schopenhauer, com declarado temor, o poder da imaginação, que "se limita a construir, de modo totalmente ocioso, belos castelos de areia". E prossegue: "em
contrapartida, quando alguma desgraça realmente já nos ameaça, muitas vezes a nossa
imaginação ocupa-se em concebê-la, sempre aumentando-a, trazendo-a mais próximo de nós e tornando-a ainda mais terrível do que já é". A imaginação seria um véu que nos separa da realidade. Tanto ao adoçá-la, como ao atormentá-la, este véu nos impediria de ver as coisas como elas realmente são.

        Temeroso dos malefícios que a imaginação possa provocar no espírito humano,
Schopenhauer chega a sugerir que simplesmente - como se isso fosse possível! - nós a descartemos. Escreve: "As coisas que dizem respeito ao nosso bem-estar e ao nosso mal-estar devem ser enfrentadas somente com a capacidade de julgar que opera com conceitos e in abstrato, ou seja, a partir da reflexão fria e austera". Faz, assim, uma defesa da austera filosofia contra a instável arte. Penso que faz mais: transforma
a arte _ com seus alçapões de fantasia e nuvem _ em uma prisão.

        "Refreie-se a imaginação!", grita Schopenhauer, cheio de fúria, no fecho de sua
máxima. Ocorre-me que, em vez de "refrear" _ o que significa amarrá-la a uma coleira _ o melhor seja dizer "ponderar". Cavalo furioso, a imaginação carrega os escritores rumo a
seu destino. Sem esses cavalos, eles nada farão de útil, simplesmente atolarão no Mesmo. Mas sim: eles precisam dos cavalos, mas precisam também de rédeas com que os dominem um pouco. Só um pouco, não demais _ pois o chicote adoece e o excesso mata.
        A máxima de Schopenhauer reforça em mim a ideia do quanto a literatura é perigosa. Mas, também, do quanto, por isso mesmo, ela é fértil. Sem algum risco, não se atravessa um oceano. A imaginação (a literatura) me leva, mais uma vez, ao tema da coragem. E se penso em coragem, penso no medo, seu inevitável reverso. Os esportes radicais da moda se tornam atividades pueris se comparados aos riscos de uma escrita. Sim: o corpo também entra em jogo quando se escreve. A imaginação é o seu sangue.

        Cita por fim Schopenhauer o pensador espanhol do século 17, Baltasar Gracián, que escreveu: "Moderar a imaginação... que se torna quase um verdugo doméstico para os tolos". Contudo, moderar não significa exterminar. Ao contrário: significa usá-la. Significa abraçá-la, a ela se entregar, de corpo inteiro, sem nunca esquecer, porém, dos riscos desse beijo.

Fonte: http://oglobo.globo.com/blogs/literatura/ (A literatura na poltrona, impressões de um observador literário, por José Castello - José Castello: O Globo)



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