Publicamos aqui, em 27/04/2012
e, dado o momento, vale o repeteco
Cultura como chave-mestra da sociedade
Gustavo Seraphim
Leonardo Brant é um dos principais personagens da atualidade, quando o assunto é mercado cultural e empreendedorismo criativo. Profissional inquieto, traz sempre boas ideias à manga e enxerga possibilidades que transpõem os sistemas de poder instituídos. Com vasta experiência como consultor de políticas culturais para empresas como Avon, Comgás, Fundação Vale e Vivo, entre outras, conhece como poucos as dinâmicas e o funcinamento interno das corporações. Por outro lado, tem profundo conhecimento das políticas públicas de cultura, nacionais e internacionais.
Já produziu diversos curta-metragens, webcasts e é diretor do documentário Ctrl-V, videopesquisa sobre relações de poder da indústria audiovisual hegemônica, seus efeitos sobre as culturas locais e o fenômeno da convergência. Tem atuação destacada como jornalista cultural, sendo editor do site Cultura e Mercado. É fundador do Cemec, idealizador o programa Empreendedores Criativos e sócio da Brant Associados.
Leonardo Brant irá ministrar o curso O Poder da Cultura, baseado em seu livro homônimo, no mês de março, pelo Cemec, onde apresentará conceitos e propostas práticas de aplicação de políticas culturais efetivas, analisando possibilidades de parcerias público-privadas e novos modelos de relação entre cultura e empresas.
Gustavo Seraphim: Em uma sociedade tão acelerada, mestiça, conectada e tecnológica, existe uma definição precisa do que é cultura atualmente? Há uma tendência de pasteurização ou hibridização da identidade cultural por conta desses fenômenos globais?
Leonardo Brant: Costumo definir cultura como uma chave-mestra, que nos ajuda a destrancar as portas para o conhecimento, a liberdade, mas também pode trancá-las, exercendo domínio e poder. Quando digo isso, estou obviamente me referindo aos usos, político e mercadológico, dos processos culturais. Mas isso serve também para o campo individual, onde conseguimos nos libertar ou nos afugentar em códigos controlados e dirigidos. Em sua origem, o senso de cultura tem a ver com segurança e controle. Com tudo aquilo que está sob o nosso domínio. Primeiro com a lavoura, a propriedade e depois com o conhecimento que nos levou a garantir e preservar essa segurança. Ela assume diversas acepções e significados, sempre relacionados à ideia de civilidade e até mesmo de civilização. E até a modernidade, sempre foi utilizada para contrapor o culto (aquele que detém conhecimento, que alcançou um estágio civilizatório) do não culto (aquele que não tem condições de discernimento, o menos capaz, portanto passivel de dominação). Desde que passamos a reconhecer, sobretudo a partir do surgimento da antropologia, que uma sociedade aborígene (dita primitiva, portanto menos complexa e inferior aos olhos dos detentores da verdade daquela época) poderia ser considerada cultura, vivemos essa esquizofrenia, essa contradição inerente ao significado de cultura. Tanto que num livro recente de Teixeira Coelho, chamado Cultura e seu Contrário, ele tenta estabelecer uma função positiva para a cultura, em seu político, contrapondo-a com a ideia de barbárie. Ou seja, quando falamos de política cultural não podemos estar falando de uma política de barbárie. Pelo menos não é essa a intenção. Mas onde eu quero chegar com essa discussão teórica, que tento simplificar ao máximo aqui? Quero chegar justamente no uso que podemos fazer da cultura como instância de poder, individual, coletivo, social. Em primeiro lugar, para ajudar ao gestor a reconhecer os sistemas de poder a partir das ações culturais, presentes sobretudo na indústria cultural dominante e suas variações no campo da informação e comunicação. E pensar o fazer cultural como reforço ou antídoto à essa tese. O curso O Poder da Cultura que já ministrei em todas as regiões do Brasil e que faz parte da programação fixa do Cemec, é uma forma de trazer essa discussão teórica para o campo prático. O que fazer com esse arsenal de informação que temos acesso e como utilizar a gestão cultural para gerar processos emancipatórios. É aí que entra a sua segunda questão. As novas tecnologias de informação e comunicação podem, ao mesmo tempo, ampliar os tentáculos de dominação e controle da verdade por um grupo muito diminuto, de aderência global, mas ao mesmo tempo amplia as formas de participação e acesso à diversidade. É um tempo rico, de reconstrução da uma nova mitologia, baseada em lígicas e paradigmas completamente diferentes do século passado. E os profissionais criativos tem um papel fundamental nesse processo.
GS: Como oferecer uma abordagem prática a um tema tão complexo? O curso O Poder da Cultura faz essa ponte?
LB: O primeiro passo é deixar de reconhecer cultura como algo indefinido, impreciso. O gestor cultural precisar ter segurança sobre o objeto e o objetivo do seu trabalho. Por isso insisto na abordagem conceitual, mas não teórica. Ela tem um viés muito prático, de como podemos reconhecer, utilizar, potencializar e oportunizar ações e atividades culturais para uma finalidade, um objetivo específico. Ou melhor, vários objetivos, com inúmeras dimensões. O Poder da Cultura explora cada uma dessas dimensões e entrega ao participante a autonomia necessária para reconhecer e modelar sua política de acordo com a sua perspectiva própria de cultura. Por isso, buscamos apresentar de maneira prática a formulação de uma política cultural, com exemplos e um olhar crítico sobre as políticas existentes, tanto do poder público quanto da iniciativa privada.
GS: Em matéria publicada no The New York Times de 05/03/2012, Elif Shafak discorre sobre a importância da arte, principalmente em países de regime ditatorial, como ponte, como instrumento para transcender fronteiras. Para além da arte, qual o real potencial transformador da cultura a seu ver?
LB: Como potencial transformador individual, exergo um grande potencial na cultura, não só como conteúdo, mas sobretudo como processo. Os processos culturais são os únicos, nos dias de hoje, capazes de acender as chamas do conhecimento, da curiosidade, da vontade de aprender e transformar a realidade, de imaginar futuros. Já não podemos abrir mão disso para o desafio da educação e do desenvolvimento pessoal. Em termos coletivos, cultura pode significar afirmação, cidadania, reconhecimento como agente transformador. A partir dos nossos pares conseguimos encontrar força para lutar contra injustiças, construir novas formas de conviver, dialogar, construir dinâmicas, criar novas economias. Essas duas dimensões estão intimamente ligadas com a dimensão social e global da cultura, com a preservação e a promoção da diversidade das expressões artísticas e culturais. Já não podemos admitir a imposição de uma cultura única, da competição, do consumo, do espetáculo, como forma de sintetizar a vida na Terra. Somos milhares de culturas vivas, que precisam ser reconhecidas, celebradas.
GS: Em seu livro O poder da Cultura, você cita Marilena Chauí, dentre tantos outros pensadores. No que se baseava o conceito de Cidadania Cultural, apresentado por ela quando secretária de cultura da cidade de São Paulo? Quais as dificuldades para a aplicação dessas propostas no país?
LB: O livro Cidadania Cultural, da Marilena Chauí, fruto de sua experiência à frente da secretaria de cultura da saudosa gestão de Luiza Erundina, é o grande marco das políticas culturais contemporâneas no Brasil. A partir dela, construímos um novo sentido para a matéria, além da visão liberal, que enxerga cultura como algo pertencente exclusivamente a uma elite letrada. Mas ela também contrapõe o Estado autoritário, que se coloca no lugar de censor e produtor de cultura. E também nos alerta para os perigos de uma política populista, que manipula uma abstração genericamente denominada cultura popular, uma nova versão das belas-artes e da indústria cultural. Por fim, combate a política neoliberal, que transforma arte em produto e entretenimento. Acredito que ainda estamos fugindo desses fantasmas. A política cultural precisa se consolidar como uma espécie de rejunte que fixa e separa esses quatro paradigmas e consegue cumprir sua função de estimular a produção e a diversidade sem criar sistemas de poder centrais, nem ao gosto do governo, tampouco do mercado.
GS: Sabemos que o mercado cultural é um dos que mais cresce no país e no mundo, mas é possível mensurar qual o efetivo potencial desse mercado? Há pesquisas aprofundadas sobre o tema no país? Qual a importância dessas pesquisas para o desenvolvimento de políticas culturais sólidas e avançadas?
LB: A indústria do entrentenimento no Brasil cresce de forma vertiginosa. Isso tem a ver com o milagre econômico que estamos vivendo e com a ascensão da base da pirâmide social. Mas nem tudo são flores na produção cultural brasileira. Temos um déficit intransponível em relação aos direitos culturais, que se traduz em infraestrutura precária e ausência de programas estruturantes que buscam a universalização do acesso. A pesquisa e os processos não comerciais ainda sofrem para sobreviver. O empreendedorismo, que é uma característica fundamental da produção cultural, é penalizado pela burocracia, carga tributária e falta de acesso a crédito. A indústria é financiada por instrumentos inadequados, como é o caso do incentivo fiscal. Ainda assim, observamos o surgimento de novos atores, novas economias e modos de fazer cultura, afinados com a potência das tecnologias de informação e comunicação, da economia criativa e da diversidade cultural. Podemos observar alguns movimentos culturais criando novas formas de produzir, financiar e circular a produção cultural. Posso citar dois fenômenos interessantes: os financiamentos coletivos e o movimento Fora do Eixo. Eles não estavam previstos nos sistemas tradicionais de financiamento, na relação entre Estado e produção cultural, ainda não são reconhecidos como mercado, mas estão vivos e muito atuantes. As pesquisas existem, mas não conseguem capturar esses fenômenos contemporâneos, pois a lógica dos indicadores econômicos ignora o fluxo simbólico e humano por trás das interações. Tudo se resume ao resultado financeiro. Precisamos criar mecanismos de transformar cultura em economia, mas também precisamos aprender a reconhecer a economia como um fenômeno cultural. Só assim podemos alterar um pouco essa lógica dominante.
GS: Você tem longa experiência em consultoria para o desenvolvimento de políticas de cultura para grandes empresas. Quais os principais desafios que essas empresas encontram atualmente para implementar programas de incentivo sustentáveis e que façam sentido dentro dos seus sistemas organizacionais?
LB: Os profissionais de comunicação e marketing das empresas já não acreditam mais naquilo que sempre fizeram para interagir com a sociedade. Saímos da era do mass media para a do self media, diz o filósofo Gilles Lipovetsky, em seu livro A cultura-mundo. Isso acarreta uma mudança substancial na maneira como se constrói a presença de uma organização, fazendo com que as marcas sejam cada vez mais reconhecidas por seus ingredientes culturais, pois são traduções de símbolos, significados. Elas já não conseguem se consolidar de maneira artificial, sem contato efetivo e dialógico com a sociedade. As redes sociais se apresentam como tábua de salvação para esse abismo enorme construído entre o mundo empresarial e a vida social, mas elas simplesmente reconstituem a lógica de domínio do mass media. O patrocínio cultural surge então como elemento de ligação entre esses dois mundos separados por todo o período da revolução industrial, pois travam contato por meio de experiências, tornando o contato mais fluido e, ao mesmo tempo, denso. Mas em muitos casos as empresas ainda funcionam como meros reprodutores de antigos sistemas. O desafio é perceber o investimento como inovação, já que estamos em pleno processo de construção de novas formas de atuação numa sociedade em ebulição.
GS: O Brasil é a bola da vez, seja pelos eventos internacionais que irá sediar nos próximos anos, Copa do Mundo e Olimpíadas, seja pelo estabilidade econômica e prestígio internacional. Como como gestores e produtores culturais, artistas e empreendedores podem aproveitar esse momento?
LB: Estamos em um momento de afirmação da nossa produção cultural, mas precisamos aprender a constituir uma indústria capaz de comunicar em grande escala, sob o risco de nos consolidarmos como um mercado potente, mas unicamente interessado em patrocinar produções da grande indústria hegemônica, com sérios efeitos sobre a formação das nossas próximas gerações. Isso não significa que devemos concentrar os investimentos na indústria. Pelo contrário, a base para o desenvolvimento da indústria é o investimento em pesquisa, em novas linguagens e experiências artísticas e culturais. A busca da inovação de valor, aquela que consegue transformar a criação em negócios, é o grande desafio.
GS: Você tem uma experiência mais recente com o programa Empreendedores Criativos, que compreendia um percurso de formação e uma rede de compartilhamento de conteúdos para empreendedores de diversas regiões do país. Qual a importância desses empreendedores para uma mudança nos sistemas de poder vigentes?
LB: O mercado cultural brasileiro comporta, como nunca antes, iniciativas inovadoras, criativas e, ao mesmo tempo, sustentáveis. O meu próprio caso é emblemático. Resolvi abandonar o consolidado mercado corporativo, com mais de 10 anos de experiência e uma carteira de clientes de grande porte, para dedicar ao setor cultural e à economia criativa, ainda em processo de consolidação. Depois de alguns anos difíceis, pós-crise econômica, hoje o meu grupo empresarial detém, além da consultoria, uma escola de negócios criativos e duas empresas de produção de conteúdo especializados nessa área. E venho auxiliando, cada vez mais, novos empreendedores a ocupar seu lugar no grande oceano azul que é o mercado cultural brasileiro. Enxergo o Empreendedores Criativos como uma grande plataforma de ativação de negócios para quem vive de arte, cultura e criatividade.
GS: Como pode o gestor cultural participar ativamente do mercado da cultura e não ficar a ele subordinado? Há uma ou mais saídas ou o gestor deve entrar na roda e jogar o jogo como ele se apresenta?
LB: O mercado engole tudo. É uma draga. Se você faz parte do mercado, você engole e, ao mesmo tempo, é engolido. É um lugar de inquietude, de agilidade, de exercício ético e sobrevivência. Um lugar inseguro, onde você vive todas as contradições e incertezas do nosso tempo. Por isso é muito rico. Eu recomendo entrar no jogo, participar ativamente, compreender a lógica, estudar os seus movimentos, ajudar a transformá-lo em coisa melhor. Eu me sinto um agente do mercado, tanto quanto qualquer outro. E vejo espaço para transformação, sobretudo com a real possibilidade de consolidação de uma nova economia, criativa, cognitiva, humana e sustentável.
GS: A Lei Rouanet, principal mecanismo de financiamento à cultura do país, está em processo de alteração no Congresso Nacional, para dar lugar ao Procultura. Quais os eixos que você entende como prioritários para a estruturação de uma política de financiamento à cultura?
LB: Em meu livro O Poder da Cultura, aponto alguns desafios para o financiamento à cultura no país, muitos deles já apontados nessa entrevista. Acredito que a discussão em torno do Procultura é ultrapassada e equivocada. Estamos tentando salvar um doente com câncer com xarope para tosse. Estamos nos desviando dos reais desafios do financiamento à cultura e, portanto, das políticas culturais do Brasil. O Cemec está produzindo um seminário sobre este tema, em parceria com o site Cultura e Mercado. Vale a pena retomarmos logo adiante.
*Leonardo Brant ministra o curso O Poder da Cultura, pelo Cemec ** (Consultor e pesquisador cultural, Leonardo Brant é presidente da Brant Associados, consultoria especializada em desenvolvimento de empreendimentos criativos. Autor dos livros O Poder da Cultura, lançado pela editora Peirópolis em 2009, Mercado Cultural (Escrituras, 2001), Políticas Culturais, vol.1 (org. Manole, 2002), Diversidade Cultural (org. Escrituras, 2003), possui diversos artigos publicados em livros e revistas acadêmicas e de mercado, no Brasil e no exterior. Editor do site Cultura e Mercado, idealizou e coordena a plataforma mpreendedores Criativos, que promove, divulga e qualifica o empreendedorismo para a economia criativa no Brasil, em parceria estratégica com o banco Santander. Como palestrante participa, desde 2001, de diversos congressos, fóruns, conferências e encontros em âmbito regional, nacional e internacional, com atuação em todos os continentes. Em 2010 fundou o Cemec, centro de formação especializado em negócios criativos, onde coordena diversos cursos de gestão cultural e criativa. Diretor do documentário Ctrl-V, sobre a indústria audiovisual dominante e seus efeitos sobre as culturas locais. Co-dirigiu com Pedro Caldas os documentários "Luz na Crise" e "Tudo o que há no mundo", sobre a crise econômica de 2008 e os efeitos nos mercados. saiba mais: www.brant.com.br. e mais: www.culturaemercado.com.br, www.empreendedorescriativos.com.br, www.ctrl-v.net. www.opoderdacultura.com.br)
** O Centro de Estudos de Mídia, Entretenimento e Cultura (Cemec) é o primeiro centro de formação especializado em negócios criativos do Brasil. Nossa missão é "oferecer conteúdos relevantes para o aprimoramento profissional de gestores e empreendedores criativos, auxiliando no desenvolvimento de uma nova economia, baseada na criatividade, cooperação, promoção da diversidade e garantia dos direitos culturais." Nossas atividades englobam: :: Produção de conteúdos inovadores em áreas como cultura, entretenimento, novas mídias e economia criativa; :: Pesquisa e desenvolvimento de metodologias para negócios criativos e; :: Rede de profissionais interessados em trocar experiências, construir e profissionalizar o novo mercado criativo no Brasil. Mais uma iniciativa do grupo Brant Associados: o mundo dos negócios a serviço da criatividade.
Fonte: http://ht.ly/aypAh
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