Trabalho Imaterial
Entrevista com o Sociólogo Silvio César
Camargo
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Reprodução
“Vivenciamos um momento de
transição em que convivem características típicas do capitalismo moderno e do
fordismo, como exploração e extração de mais valor, com outras novas, que se
contrapõem a elas e tendencialmente passam a ter um papel central, como é o
caso do trabalho imaterial”. A ponderação é do sociólogo Sílvio Camargo na
entrevista à IHU On-Line(www.ihu.unisinos.br).
Ele conceitualiza o trabalho imaterial como “aquelas atividades que possuem
como conteúdo principal a comunicação, a cooperação, o conhecimento e o saber”.
Em seu primeiro livro, Modernidade e dominação: Theodor Adorno e a teoria
social contemporânea, Camargo traz a ideia de “que a chamada pós-modernidade é
um prolongamento das formas modernas de dominação, basicamente da racionalidade
instrumental”. Na segunda obra, Trabalho imaterial e produção cultural, que
inspira esta entrevista, aponta que “alguns diagnósticos pouco otimistas de
Adorno e Horkheimer se tornaram ainda piores. Com o advento do trabalho
imaterial, a dominação continua a se afirmar como exploração do trabalho, mas
agora como apropriação da subjetividade humana em sentido amplo, daí a
importância de autores que trabalham com a noção de biopoder”. Sílvio Camargo é
graduado em Filosofia pela UFRGS, mestre e doutor em Sociologia pela Unicamp
com a tese que originou o livro” Trabalho imaterial e produção cultural: a
dialética do capitalismo tardio” ( SP: Annablume, 2011). Camargo leciona na
Unicamp e também é autor de “Modernidade e dominação: Theodor Adorno e a teoria
social contemporânea” (SP: Annablume/Fapesp, 2006). Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que é o trabalho
imaterial?
Sílvio Camargo – A definição de trabalho
imaterial não é algo simples e conduz facilmente a confusões. Entendo por
trabalho imaterial aquelas atividades que possuem como conteúdo principal a
comunicação, a cooperação, o conhecimento e o saber. O trabalho imaterial se
refere desse modo a qualificações subjetivas que passam a ter um papel central
no processo de valorização das mercadorias. Uma mercadoria, cuja produção
resulta de trabalho imaterial, pode ser quanto a sua forma física, material ou
imaterial; mas a questão principal está no tipo de trabalho, ou de ação,
empregado para sua produção. A noção de “saber” é provavelmente o que melhor
define, em um sentido quase didático, o trabalho imaterial, pois diz respeito
ao fato de que o valor de uma mercadoria não resulta necessariamente do
dispêndio de tempo de trabalho empregado na sua produção (trabalho abstrato),
mas sim dos saberes mobilizados por aqueles que a produzem. Saberes esses que
incluem a criatividade, a imaginação, a espontaneidade, e que se aproximam
daquilo de que Karl Marx , nos Grundrisse, chamou de “general intellect”. Em
suma, o trabalho imaterial se define pelo tipo de ação humana nele envolvido, e
não pelas propriedades sensíveis das mercadorias. Para sermos ainda mais
claros: um par de tênis de uma marca famosa, cujo preço é bastante alto, é
expressão de um valor cuja determinação não está em suas propriedades físicas
ou mesmo no tempo de trabalho despendido para sua produção; o valor se
relaciona qualitativamente com as atividades de criação, design, publicidade,
marketing e outros atributos simbólicos, que revelam a participação de uma
subjetividade, de trabalho imaterial, que se torna elemento central de
valorização.
IHU On-Line – Qual é seu contexto de
surgimento?
Sílvio Camargo – É possível afirmarmos que, em
certo sentido, trabalho imaterial existe ao longo de todo o capitalismo
moderno, como já vimos Marx sugerir nos Grundrisse, embora como algo ainda
irrisório e marginal dentro do modo de produção capitalista no século XIX.
Ocorre que alguns teóricos da sociedade contemporânea entendem que o trabalho
imaterial passou a ocupar um papel central na produção da riqueza capitalista
desde, aproximadamente, o início da década de 1970. Tais autores como André
Gorz , por um lado, e Antonio Negri e Maurizio Lazzarato por outro, não
obstante suas diferenças, apontam para um tendencial esgotamento da teoria
marxiana do valor-trabalho como núcleo compreensivo da forma de produção capitalista
nos últimos quarenta anos. Nesse sentido, a noção do imaterial corresponde à
ideia, grosso modo, de que o capitalismo mundial passou do fordismo ao
pós-fordismo. Porém, como estamos falando não só do avanço das forças
produtivas, mas também das relações sociais de produção, tais autores convergem
para a noção de capitalismo cognitivo como o que melhor define a etapa do
capitalismo iniciada em 1973. Embora alguns autores associem trabalho imaterial
com serviços, a partir de uma má leitura das teses de Daniel Bell sobre a
sociedade pós-industrial, o contexto de surgimento do imaterial é bem mais
complexo. Trata-se de entender a distinção entre valor e riqueza, e a partir
daí perceber que até mesmo o advento daquilo que muitos chamam de capitalismo
financeiro se relaciona ao papel central cumprido hoje pelo trabalho imaterial.
Muitas
outras designações já foram dadas para se referir a este período histórico,
tais como sociedade em rede, sociedade da informação, sociedade de consumo, em
análises que de modo geral compartilham o entendimento quanto ao papel central
das novas tecnologias dentro desse período da História.
As
transformações que têm ocorrido neste período histórico ocorrem em diversas
esferas da sociabilidade humana, não apenas no mundo do trabalho. Acredito que
vivenciamos um momento de transição em que convivem características típicas do
capitalismo moderno e do fordismo, como exploração e extração de mais valor,
com outras novas, que se contrapõem a elas e tendencialmente passam a ter um papel
central, como é o caso do trabalho imaterial.
IHU On-Line – Como a dominação e a
sociabilidade se entrelaçam com a cultura e o trabalho imaterial?
Sílvio Camargo – Meu ponto de partida para
estudar o fenômeno do trabalho imaterial foi minha trajetória de estudos sobre
a teoria crítica da sociedade, em especial a Escola de Frankfurt. Há vários
anos reflito sobre o como esta tradição de pensamento pode dar respostas às
atuais e intensas transformações do capitalismo contemporâneo. Nesse sentido, a
questão é como pensar a relação entre dominação e emancipação em um capitalismo
que está em transição e onde o trabalho imaterial a cada dia ocupa um espaço
mais importante. Em meu primeiro livro Modernidade e dominação: Theodor Adorno
e a teoria social contemporânea (2006) defendi a ideia de que a chamada
pós-modernidade é um prolongamento das formas modernas de dominação,
basicamente da racionalidade instrumental. Já neste meu novo livro, sobre o
imaterial, procuro apontar que alguns diagnósticos pouco otimistas de Adorno e
Horkheimer se tornaram ainda piores. Com o advento do trabalho imaterial a
dominação continua a se afirmar como exploração do trabalho, mas agora como
apropriação da subjetividade humana em sentido amplo. Daí a importância de
autores que trabalham com a noção de biopoder. A riqueza não se produz mais
apenas no tempo de trabalho, mas fundamentalmente no tempo de não trabalho,
naquilo que Habermas e Gorz chamam de mundo da vida [Lebenswelt], no qual os
indivíduos compartilham valores e experiências culturais em diferentes
sentidos. A cultura e as experiências culturais cotidianas, como o lazer, o
turismo, o entretenimento, o uso constante das novas tecnologias, etc., cumprem
hoje um papel nunca antes visto na produção da riqueza capitalista, ao preço de
processos de reificação também nunca antes percebidos.
IHU On-Line – Por que você afirma que
essa é a dialética do capitalismo tardio?
Sílvio Camargo - Ao contrário de
Moulier-Boutang e dos outros pensadores que mencionei antes como proponentes da
tese do trabalho imaterial, defendo a posição de que não é exatamente o
conhecimento a questão fundamental do capitalismo em sua atual fase. O que
valoriza as mercadorias, como tendência crescente, é, em meu entendimento, a
própria cultura. Nesse sentido, faço uma distinção entre cultura e saber. Na
medida em que o trabalho imaterial, enquanto constituição de certa
subjetividade se forma fora do tempo e do espaço de trabalho clássicos, aquilo
que alguns também chamam de externalidades, cultura e trabalho se entrelaçam
como configuração de uma nova totalidade, portanto dialética. Prefiro a
expressão capitalismo tardio para nomear o presente num sentido muito próximo
ao de Fredric Jameson, que já apontava na década de 1990 que a pós-modernidade
é justamente a inseparabilidade entre economia e cultura. Em meu entendimento,
as teorias bidimensionais de sociedade como as de Gorz e Habermas, ou as que
recorrem ao pós-estruturalismo como de Negri e Lazzarato, ao abandonarem a
tradição da dialética marxista-hegeliana, apoiam-se em pressupostos
epistemológicos equivocados para a compreensão do presente, entre outras razões
porque abandonaram a categoria de totalidade.
IHU On-Line – De que forma o trabalho
imaterial inaugura um outro tipo de capitalismo?
Sílvio Camargo – Falarmos de outro tipo de
capitalismo significa falarmos ainda de capitalismo. Moulier-Boutang em seu
livro Le capitalisme cognitif (2007) defende que, a partir de 1975, ingressamos
em uma terceira fase do capitalismo que sucede a fase anterior, do capitalismo
industrial, que teria durado de 1750 até 1973. Não me sinto convencido de que
“cognitivo” seja a melhor definição para esta etapa que, de modo geral, quanto
à periodização, se identifica com a ideia de pós-modernidade como um período
histórico, similar à visão de Jameson. Estou convencido, entretanto, de que
nela o trabalho imaterial tem cumprido um papel central, em que a produção da
riqueza capitalista não depende mais necessariamente daquilo que Marx chamou de
trabalho abstrato. Vivemos outro tipo de capitalismo, embora ainda convivendo
intensamente com características do passado, porque o trabalho imaterial
representa uma nova forma de produção de riqueza que não mais mediante a
produção do valor-trabalho. Considero esclarecedora a obra de Moishe Postone
“Time, labor and social domination” (1993) para compreendermos a distinção
entre produção de riqueza e produção de valor.
IHU On-Line – Por que o imaterial traz
a gestação de novas possibilidades utópicas?
Sílvio Camargo – Ao mesmo tempo em que o
imaterial se refere a um aprofundamento das formas modernas de dominação,
estamos falando de um tipo de trabalho que seja na forma de saber ou de
cultura, por isso mesmo não pode ser mensurado ou diretamente apropriado como
tempo de trabalho. Ele resiste, por sua natureza, a ser apropriado
privadamente, embora possa sê-lo. A nova dimensão utópica do imaterial está
justamente no fato de que conhecimentos e saberes diversos podem ser produzidos
e compartilhados coletivamente sem serem apropriados pelo capital. É por isso
que o capitalismo tardio é, ao mesmo tempo, a crise do capitalismo. A utopia
que acompanha o trabalho imaterial se refere à possibilidade de visualizarmos
uma sociedade na qual o trabalho em sentido moderno deixa de ser o núcleo fundamental
da sociabilidade e do próprio sentido existencial e humano. Essa utopia
significa pensar uma autonomia que não pode ser encontrada no trabalho. Por um
lado, consideramos insensatas afirmações como a de Negri de que já vivenciamos
um “comunismo do saber”, embora as análises dele e de outros autores que
colaboram na revista francesa “Multitudes”, acerca da configuração de algo como
uma multidão, tenha outros traços factíveis para a formulação de novas utopias.
Por outro lado, proposições políticas como as de Gorz, entrelaçadas à
emergência do imaterial acerca da redução radical da duração do trabalho e
institucionalização de uma renda básica universal, apontam justamente para uma
renovação das energias utópicas e para além delas, como formulação de projetos
políticos bastante claros.
IHU On-Line – Qual é a peculiaridade
da subjetividade dos sujeitos numa sociedade notadamente marcada pela dialética
do capitalismo tardio, pelo hiperconsumo e pela organização em redes?
Sílvio Camargo – O problema da subjetividade,
aspecto central de toda a modernidade, sempre esteve no centro das análises
marxistas e demarca um tema central para inúmeras correntes do pensamento
contemporâneo, desde a psicanálise ao pós-estruturalismo. Nosso recorte, ao
pensá-la, adota como parâmetro a tradição dialética, em especial as ideias de
Georg Lukács e Theodor W. Adorno, centradas em torno do conceito de reificação.
Entendo que o capitalismo vivencia um momento bastante diferenciado, uma etapa
de transição em direção a algo ainda incerto. Nesta etapa as antigas análises
sobre a reificação, isto é, para usar uma expressão de Adorno: “sobre o como a
dominação migrou para dentro dos indivíduos”, precisa ser repensada à luz de
uma forte contradição: nas sociedades do hiperconsumo, das redes e da
informação, onde a internet cumpre um papel fundamental, a subjetividade dos
sujeitos deixa de ser passiva diante, por exemplo, das imposições da indústria
cultural, a subjetividade se torna ela mesma produtiva, cumpre um papel
determinante na própria produção das mercadorias. A contradição está em que a
subjetividade da sociedade em rede se constitui também como uma base real de
resistência ao capital; basta pensarmos na maneira pela qual os jovens hoje
escutam música, compartilhando arquivos sem pagar por isso. De outro lado, o
tipo de música que se escuta, ou os bens e experiências culturais
compartilhados pela maioria dessas mesmas subjetividades trazem em sua forma
estética as mesmas características de mercadoria da etapa anterior do capitalismo,
tornando os indivíduos ofuscados diante um capitalismo que traz, sempre, a
marca da dominação. Também nesse sentido, o capitalismo tardio é o advento do
absolutamente novo convivendo com as marcas do passado, da modernidade.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar
algum outro aspecto não questionado?
Sílvio Camargo – O debate sobre o trabalho
imaterial é recente, como o próprio fenômeno, e no Brasil é ainda pouco
estudado. Parece-me que há entre nós duas tendências fortes de leitura: uma
delas, associada ao campo daqueles que Postone, sem nenhum sentido pejorativo,
chama de marxismo tradicional, tende a negar o conceito ou sua importância a
partir do entendimento de que isso seria uma traição à tradição marxista,
principalmente quanto ao abandono da teoria do valor-trabalho. Por outro, temos
os pesquisadores mais ligados ao campo da comunicação que adotam claramente
alguns elementos teóricos oriundos do pós-estruturalismo, principalmente do
último Foucault e de Deleuze , e
assumem, a partir de uma forte reflexão sobre as novas tecnologias, que estamos
imersos em outro momento da História, no qual as ideias de Marx são
insuficientes para se compreender o presente. Por sua vez, me parecem demasiado
otimistas com a ideia de multidão.
A
posição teórica que defendi nesse meu segundo livro vai ao encontro do
entendimento de que vivemos um momento diferenciado da História do capitalismo,
um momento transitório, em que a obra de Marx continua a esclarecer a
realidade, mas nem tudo o que está colocado. Defendo uma posição não ortodoxa,
como de resto sempre foi a dos seguidores da Teoria Crítica. Assumir a
plausibilidade histórica de noções como trabalho imaterial e pós-modernidade
não significa negar a existência de classes sociais, exploração e injustiça.
Pelo contrário, indica percebermos que a dominação capitalista nunca foi tão
intensa, e pensar qualquer projeto emancipatório nesse contexto depende de uma
apreensão lúcida das transformações reais, objetivas, que se efetivam na
História, outra das lições da tradição dialética.
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