23 de dez. de 2017

Gingobel - Crônica do querido Ubiratan Teixeira

Doces Saudades do meu "bom velhinho" Bira. Salve, Mestre!!!
Do baú das memórias afetivas: este Lio Ribeiro recebendo autógrafo do Mestre Ubiratan Teixeira

Gingobel
Ubiratan Teixeira*

A criatura falou que eu estava mal humorado, que devia estar com algum problema de ordem emocional e quis saber se havia alguma razão lógica para isso, acrescentando que era tempo de “festas”, que Papai Noel estava vindo para alegrar nossos corações, época de sair por aí cantando o gingôbel: a criatura estava convidando para um encontro de confraternização natalina.

— Não. Não estou mal humorado não, princesa. E nem curto nenhuma crise pessoal: apenas estou desmotivado para participar de uma reunião desse gênero. Mesmo por que não vejo nenhuma razão para confraternizar nem o que iria confraternizar.

— Sendo assim fica frio, gatão. Te vejo noutros natais.

E desligou o telefone depois de um prolongado beijo via satélite.

Confraternização pela passagem de mais um natal.

É claro que estou me sentindo um privilegiado apesar da morrinha que envolve o esqueleto, das juntas doloridas e dessa gripe desadorada que está me tirando do sério. Mas entre viver o momento e fazer dele uma festa de arraial a distância é muito grande.

Primeiro, preciso encontrar o gaiato que inventou esse chavão de “melhor idade” para os que já passaram dos setenta. Sei que a idéia é sublime, uma forma humana de compensar os transtornos naturais da idade avançada, as juntas emperradas, as tripas trôpegas funcionando precariamente, a criatura inteira preparando-se para o decúbito dorsal definitivo.

Gosto da criatura que me fez o tal convite, mas acho-a de uma leviandade fora dos meus limites de tolerância.

— Bira, tô sendo paga para isso e me passaram uma relação básica de convidados. Não é um festão como foi o do milênio, nada disso, exigindo longo e a black tié. Podes vir com tuas chinelas de dedo e vestido nas tuas bermudinhas de chita, que ninguém vai chiar! Uma festinha em petit comitê para cem convidados e pediram que eu a completasse com os nomes que eu achasse mais importante de nossa vida cultural.

Aquele detalhe foi que me alertou e me fez lembrar no segundo seguinte de Maria Cachucha, uma comédia de costumes – que é como se qualificava o gênero, na época -, escrita por Joracy Camargo nos anos 40, onde os milionários da história convidavam sempre para suas badaladas festinhas, como “atração” cultural, os excêntricos “vassouras” e “bota-pra-moer” da comunidade – que é como desde muito tempo, nesta cidade, políticos e administradores culturais estão considerando os artistas maranhenses de todos os gêneros quando pilhados fora de seu habitat natural: excêntricos e animal carente.

Independendo disto considero farisaico este tipo de ajuntamento: comemorar e confraternizar o quê? As malditas previsões de São João acontecendo escancaradamente e ninguém conseguindo perceber? –guerras e conflitos sendo armados no Oriente e no Ocidente, meia dúzia de desvairados entupindo o mundo de tóxico, a miséria e a fome de uma grande faixa do planeta sendo encaradas como um fenômeno natural? Nunca gostei do natal; tudo muito convencional e muito falacioso, muito fora de nossa realidade cultural, desde os símbolos mais populares, como a tal árvore coberta de neve e o Papai Noel Coca-cola, até os presentes às vezes comprados com sacrifício do salário e da paz de espírito; incluindo os sorrisos e os tapinhas nas costas.

Eu ainda era bem criança, mas nunca me esqueci do meu primeiro choque cultural com os festejos natalinos, na visão dramática de seu Leitão, um correto funcionário do SAELTPA, sendo devorado por tubarões próximo ao Matadouro num dia 25 de dezembro e do comentário do tenente Viegas, meu pai adotivo, para minha mãe também adotiva, Dica: “- O sujeito se matou, envergonhado com o débito que fez para a festa de natal. E agora os agiotas vão deixar a viúva com os filhos sem eira nem beira”.

Minha segunda visão conflitante com o Natal aconteceu no Jardim Decroly, quando Santinha Vasconcelos não podendo pintar Perereca de alvaiade para ser o Menino Jesus do presépio vivo que a escola iria mostrar ao interventor Paulo Ramos (Perereca era um negrinho traquinas, filho adotivo do próprio Interventor) me escolheu para tal função; mas não permitiu que eu ficasse assim como vim ao mundo, do mesmo modo como deveria estar o Menino na sua Santa Manjedoura.

O terceiro conflito ocorreu no segredo do meu próprio lar, também na primeira infância, quando meu pai intuiu que eu havia descoberto o segredo do Papai Noel: “Não tem mais graça, minha velha, falou o tenente para minha mãe: ele já sabe de tudo…”.

Fatos desses gêneros e outros de maior impacto ligado à data foram tirando meu encanto pelo Natal. Principalmente aquela comilança da meia noite, todo um ritual pagão de libação e desordem – por que só nessa noite as pessoas se abraçavam e se desejavam felicidades? Por que o tal espírito natalino não funcionava o resto do ano? Por que só nessa noite titia Nilma deixava que eu lhe bolinasse, mas me castigava nos dias seguintes? Por que todas essas coisas só nesse dias e não no resto do tempo inteiro?

“Hoje não temos guerra, na Itália”, lembro de meu pai comentando consigo mesmo, rodando o dial do nosso potente rádio “Mende”, na tentativa de sintonizar a BBC de Londres, nos anos 40: “Só música de natal”, concluía diante de uma peça qualquer de Haendel.

Não gosto de Natal justamente por isso, por causa do farisaísmo da raça, que se agride o ano inteiro, que se violenta e se degrada, mas de repente, só para se fazer notar, dá trégua a seus ódios, às suas indiferenças para com o próximo, aos seus desrespeitos e às suas desvirtudes para confraternizar: param suas guerras pessoais ou coletivas, recolhem suas armas, reembainham temporariamente suas facas e estiletes e cantam em coro o tal do gingôl bel.

Mas o planeta está muito entulhado de maldades, para se cantar qualquer tipo de noite feliz.

* crônica publica em 16/12/11 na coluna Hoje é dia de: (Caderno Alternativo-O Estado do MA)

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