21 de set. de 2012

São Luís dos bondes








08/09/2012 - 03h30

Depoimento: Do janelão, eu admirava as passageiras que sorriam do bonde


LUIZ COSTA LIMA
ESPECIAL PARA A FOLHA



Duvidei se devia aceitar o convite de partilhar dos que comemoram os 400 anos de São Luís. Perguntei-me: posso me considerar maranhense?

Nasci lá, por certo. Mas, com nove meses, fui com minha família para o Recife.
Para quem conheça o Norte e o Nordeste, não é novidade que a diferença nos modos de socialização de seus habitantes não é menor porque o Maranhão é geograficamente no Nordeste.
Se fossem esses os únicos dados, deveria ter declinado do amável convite. Mas fazê-lo seria injusto com minha própria história de vida.
Como minha família materna era de São Luís, onde meu avô Genésio de Moraes Rego era médico-clínico e, eventualmente, chefe político, durante toda a adolescência passava as férias em São Luís. Ali, portanto, passei a etapa mais descompromissada da vida.
Ficava então meses na rua da Paz, 338, transversal à igreja de São João, perto da qual havia uma loja maçônica. Nenhum lugar seria melhor para a curiosidade de um adolescente. Pela tarde, ao me debruçar em um dos janelões da casa do avô, via passar o bonde da praça Gonçalves Dias, favorito das mocinhas que espaireciam das sombras maternas.
O bonde descia por uma colina inclinada, seguia pela praça João Lisboa e dava a volta até seu ponto de partida. Não sei se continua a haver bondes em São Luís. Naqueles anos, era a condição de um voyeurismo promissor. Pela troca de olhares nos identificávamos. Assim, ao nos encontrarmos nas festas dos clubes, de algum modo já sabíamos quem éramos.
Essa é a primeira cena que guardo da cidade em que nasci. A segunda me levava para mais longe. Como vínhamos do Recife por navio, costumava trazer minha bicicleta.
Com ela, subia e descia as ladeiras da cidade e aprendia a distinguir as ruas onde os sobradões mantinham seus azulejos lusitanos. Muitos deles eram de proprietários empobrecidos, que os alugavam, para os chamados bailes de segunda.
Naquela São Luís, o Carnaval começava no Réveillon. Quando vinha o Carnaval, o período das festas mais livres estava no fim. Nelas, por um pequeno ingresso, os homens tinham a oportunidade de escolher suas mascaradas.
A curiosidade era saber se, entre elas, não estaria alguma prima mais atrevida.
Os bailes de máscara fixam-se na memória como a segunda cena, a mais saudosa. Mais sortudo era aquele cuja parceira aceitava interromper o baile por um passeio de carro pelas praias que circundavam a cidade.
A liberdade dos sentidos era mais surpreendente para um garoto acostumado aos modos severos do Recife canavieiro.
Porém seria arbitrário destacar as praias que circundam São Luís apenas pela companhia de nossas anônimas amigas. Talvez fosse então menos impactante, mas agora, ao recordar o que já não há, lembro a delícia que era estar num barco pela baía de São Marcos, descer pelas dunas gigantes e/ou provar os mais deliciosos camarões que já conheci.
Não esqueço uma terceira cena. Como por volta dos 19 anos decidira estudar literatura, costumava frequentar a Biblioteca Municipal, chamada de Bolo de Noiva. Foi lá que explorei toda a estante dos poetas românticos brasileiros. Como sua linguagem era acessível, mais impressionado fiquei quando me deparei com "O Guesa".
Não conseguia entender como de repente os versos se tornavam tão difíceis. Intrigado, Sousândrade se tornou minha primeira obsessão intelectual.
Durante anos o reli. Mas sei que agora, ao reunir as três cenas, é a última que menos me comove. Antes pareço escutar o barulho do bonde, o gesto do motorneiro, que parava a condução para, com uma manivela, abrir o trilho indicado para a direção a assumir, enquanto, do janelão, eu admirava as passageiras que sorriam discretamente, como se não se soubessem apalpadas pelo olhar.
LUIZ COSTA LIMA é professor emérito da PUC (RJ). Publicou, pela Companhia das letras, "A Ficção e o Poema"








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